Episódio 17 - "Sucesso no meio acadêmico" é o quê?
Oi gente, como estão por ai? Se estão com saúde já estão no lucro, pois a maioria das pessoas que conheço teve algum problema nos últimos dias. Quem poderia imaginar que o Agro não era o mocinho, não era pop, mas trouxe morte e destruição? Talvez alguns cientistas e ativistas, apenas.
Essa cartinha foi inspirada diretamente pelo texto Sucesso na literatura é o quê? publicado na newsletter Entrecruza do Eric Novello que me fez passar uns dias refletindo sobre critérios do assim chamado sucesso. Em primeiro lugar queria dizer que fui criança na década de 1980. Assim, toda vez que escuto a palavra sucesso, lembro dos comerciais do cigarro Hollywood, o sucesso!
Vejam bem, os anos 80 eram tão contraditórios e surreais que uma marca de cigarro tinha comerciais no horário nobre de TV com pessoas praticando esportes “radicais” enquanto tocava algum hard rock arena/farofa …. e foi assim num dos comerciais de cigarro que conheci Winger com o clássico Miles Away . Na peça musical Rock of Ages na Broadway - assisti a montagem de 2009 - tinha toda uma tiração de sarro com o Kip Winger (vocalista da banda) por conta disso.
Já na adaptação pro filme hollywoodiano (com Tom Cruise) essa parte é cortada, a piada era específica demais e voltada pra quem acompanhava a “cena poseur”. Perdoem essa breve digressão, mas tudo isso pra dizer que sucesso enquanto valor discursivo e simbólico muda de acordo com diferentes imaginários em épocas e lugares.
Dito isso, engana-se quem pensa de forma completamente idealizada que a ideia do “sucesso” é incompatível com a vida de pesquisador. Afinal, quem conhece pesquisadores senão apenas eles mesmos? É um meio para o qual pouquíssima gente dá bola. Se for das Humanidades então, não rola grana, sua “fama” se é que ela vai existir é completamente de nicho, você não se torna uma celebridade dessas que as pessoas apontam na rua.
Vantagem: não terão paparazzis atrás de você quando for em lugares públicos como pegar um avião ou ir tomar uma cerveja num pub na Espanha no meio das férias. Porém, a probabilidade de ter algum aluno que vai dizer “oi professora” em qualquer lugar do mundo é muito grande e acreditem, ela sempre acontece.
Após ler o texto do Eric, fiquei me perguntando, quais seriam os critérios para alguém ser um “sucesso” em um meio no qual tem egos abundantes para todos os lados. Sigo deixando a palavra entre aspas porque na minha concepção é difícil aceitar que fazer sucesso tenha qualquer coisa a ver com a Academia, um dos meios de trabalhos menos cool do universo, diferente da literatura, da música, das artes em geral, por exemplo.
No entanto, venho pensando que nos últimos anos acompanho de perto pelo menos dois fenômenos que tem me intrigado e na minha concepção podem estar relacionados a uma certa ideia de sucesso: o primeiro deles são pessoas na internet que se auto intitulam pesquisadores/as e quando você vai atrás das credenciais da pessoa, simplesmente não há.
A pessoa não passou pelas instâncias de legitimação acadêmica mas coloca lá na sua bio que é pesquisador. O segundo está na vinculação entre acadêmico/cientista e influenciador digital e/ou produtor de conteúdo/divulgador da ciência.
Sobre o primeiro caso, há uma certa confusão sobre a qual algumas pessoas - a maioria de má fé, utiliza o termo, então vamos lá. Para ser um pesquisador/a científico é preciso passar por um programa de pós-graduação stricto sensu e ter outorgado os títulos de mestrado e doutorado. É preciso submeter sua pesquisa aos pares, fazer publicações em periódicos científicos, etc etc.
Apesar de ser a foto clássica de cientista no laboratório, geralmente não relacionada às Ciências Humanas, pelo menos aqui uma pesquisadora de cabelo colorido, me representando ;)
O pesquisador científico pode estar vinculado a uma instituição (universidade, instituto de pesquisa, etc) ou ser um pesquisador independente (sem vinculação com instituições). Mas mesmo de forma independente é preciso ter o título de mestre ou doutor. Experimente solicitar uma bolsa de pesquisa científica ou projeto para qualquer agência de fomento sem ter a titulação exigida para o edital, você será eliminado na análise de documentação. E não, colocar na sua bio de rede social, que é pesquisador não sendo não vai te conseguir verba pra viajar a trabalho.
A questão é que é possível realizar outros tipos de pesquisa não científica como por exemplo no jornalismo. É um tipo de pesquisa, sim, de levantamento de dados, fontes, documentos etc, que pode trazer dados interessantes e importantes, mas não é pesquisa em nível acadêmico. A pessoa pode obter financiamento? Pode, mas de outra ordem, provavelmente não das agências de fomento. Estou dizendo que é melhor ou pior? Não. Estou dizendo que são tipos diferentes de pesquisa.
Existem vários bons livros e até grandes reportagens que são frutos de pesquisa jornalística e que são ótimos como fontes de informação e contextos. Leio vários deles e os tenho em minha biblioteca. Mas não são livros de teorias, não tem proposições epistemológicas a serem discutidas e tampouco metodologia científica.
O que tenho visto, sobretudo em algumas áreas das humanidades, são pessoas se apropriando de uma titulação em busca de autoridade e legitimidade “porque lêem livros sobre o tema tal há sei la quantos anos”. Ler um uma pilha de livros ao longo da vida não transforma ninguém automaticamente em pesquisador e nem te coloca dentro do sistema científico da pesquisa - sistema que inclui projetos, financiamentos, avaliações, pareceres e toda uma terminologia e práticas tão específicas quanto as de qualquer outra profissão.
Ok, é um estereótipo, mas a pessoa que bateu boca comigo era quase como as moças da foto rs
Certa feita, uma pessoa tentou bater boca comigo afirmando que tinha o direito de se intitular era pesquisadora, mesmo sequer tendo terminado a graduação, porque fazia pesquisa para produção de conteúdo para redes sociais. Como diria as Las Bibas de Vizcaya, então tá, ai mona, então tá bom! Essa foi minha única reação, pois não discuto com gente louca ou picareta.
Pesquisa para conteúdo é um outro tipo de pesquisa, pode ser parecida ou diferente da pesquisa jornalística e estar mais relacionada ao consumo, marketing, design, UX e publicidade. Pode ser somente desk research aliada a outros métodos de pesquisa de mercado. E sim, eu já fiz e ocasionalmente faço relatórios e consultorias de pesquisa de mercado e as finalidades são completamente diferentes, embora existam alguns cruzamentos e inferências entre ambas.
Ai eu fico me perguntando por quê a pessoa em vez de aceitar que faz um tipo de produção e que pode ser legal fica querendo tanto essa chancela. Acredito que o imaginário e o estereótipo que relaciona “Academia” à algo ligado a uma certa elite intelectual, deva pegar forte. É minha única explicação. A pessoa quer os valores que estão envoltos no título, quer aquele rótulo, quer gozar de uma certa popularidade e legitimação, quer colocar no LinkedIn e dar carteirada em discussão online e não o trabalho em si. Acha que dessa forma será chamada para dar entrevistas, aparecer na mídia num estilo celebridade, porém parecendo inteligente, porque é essa a performance.
Na verdade esse é um dos aspectos, porque o outro desdobramento disso é aquele do ódio à pesquisa e à ciência que vimos muito explicitamente durante a pandemia - e seguimos vendo nos movimentos anti-ciência. O que acho mais engraçado é que boa parte dos influenciadores do estilo “ame a ciência, defenda a pesquisa e o SUS” e outros quetais defendiam as pesquisas em biológicas e as exatas - inclusive alguns deles deixaram bem claro seus posicionamentos em entrevistas só faltando dizer que as humanas podiam acabar. Chegou a ter gente falando que “certos temas” não deveriam ser estudados.
Às humanidades e sociais, restam invariavelmente as sobras, as bordas. Para minha sorte, eu vim do underground então sempre estive muito à vontade nos nichos e segmentos mais fora dos centros sejam eles geográficos ou sociais. Fui forjada em sofrer bullying por meu jeito de ser, temáticas etc. Então isso sinceramente sequer me abala.
Quando coloquei magens de pesquisadores científicos de humanidades já apareceu essa foto meio obscura de um cara (provavelmente um homem numa biblioteca)
Sobre a questão dos influenciadores e divulgadores científicos que no processo “ficam famosos” é um caso bem mais complexo que só pode ser analisado um a um. A maioria deles é ou foi pesquisador - no sentido de que muitos largam a pesquisa pra focar só na divulgação, o que acho justo pois é uma trabalheira do cão. Entretanto, como em todos os campos há tensões e muita gente está super atualizada em relação a sua área, porém nas humanidades acha que citar texto ou pesquisas dos anos 1970 é suficiente.
No Brasil, a maior parte também vem das ciências biológicas ou das exatas em geral e do sudeste. Tentei localizar a pesquisa que tinha esse mapeamento, mas o link não tá mais funcionando, mas ao final vou deixar alguns artigos de recomendação.
Como é observado em boa parte da literatura nacional sobre o tema, a maioria dos influencers de ciência no Brasil tendem a usar uma linguagem mais calcada no entretenimento, o que pode ser muito legal, mas também pode gerar certos borrões e confusões em relação a uma mistura um tanto complicada entre informação, opinião, piadas, etc. Eu teria uma série de coisas para falar sobre isso, mas requer uma formulação que não é o propósito dessa cartinha e porque não quero ser injusta uma vez que há trabalhos bons e há trabalhos muito ruins, como em qualquer área.
Por que falei isso tudo? Porque vejo que nesses dois casos que apontei há uma certa vinculação sobre o que é fazer sucesso na Academia constituindo imagens que geram valores a serem seguidos. Obviamente para outras pessoas há outros modelos e critérios. Vejo muito em homens jovens uma necessidade de espelhamento no “intelectual clássico” gola rolê, oie oie oie eu sou mais teórico que você, sou polêmico, não cito colegas brasileiros, muitos seguindo o “mestre”/orientador com seu ar blasé e emulando um ar de tédio profundo.
Mas há também uma geração mais despojada e que está conseguindo se encontrar e equilibrar seu estilo de vida próprio e suas questões com a vida na pesquisa. Gente pé no chão.
Dessa forma, pensei muito no que é sucesso acadêmico para mim dividindo em uns tópicos como o Eric fez no texto dele sobre a literatura. São pontos bem pessoais
Viver e trabalhar numa cidade em que você gosta e está adaptado;
Conseguir viver de forma condizente, com estabilidade e digna do seu trabalho como professor-pesquisador tanto em questões salariais como de condições de trabalho (essa anda bem difícil);
Ter autonomia em pesquisar o que realmente lhe interessa independente de agendas autoritárias, questões institucionais, políticas, etc;
Conseguir sofrer o mínimo possível com rejeições de artigos, projetos;
Ter amigos e amigas dentro e fora da Academia;
Tentar não ficar preso em modelos e estereótipos de vida e de teorias comparativos entre colegas, ex-professores e tudo mais, ser você mesmo;
Sinceramente ligo a mínima para prêmios acadêmicos. Acho até complicado comparar pesquisas com temas distintos, minha filosofia é se ganhar alguma coisa legal, se não ganhar segue o baile, há outros tipos de reconhecimento tão massa quanto - sinceramente prefiro que as pessoas me leiam;
Ver minhas orientandas conseguirem realizações e conseguirem trabalho nessa disputa ferrenha de poucas vagas que vivemos.
Toda vez que alguém me fala, “olha eu não imaginava que podia estudar o tema X, Y, Z (gótico, fãs, cultura pop, etc) até ler os teus textos”, me sinto em um comercial do Hollywood, o sucesso, mas sem cigarro e sem esportes radicais só com um hard rock farofa tocando hahaha!
Acho que era isso. Até a próxima!
Dicas Finais (artigos):
Science on YouTube: Legitimation Strategies of Brazilian Science YouTubers de Natália Martins Flores e Priscila Muniz de Medeiros na Revue française des sciences de l’information et de la communication. O artigo é de 2019, ou seja anterior à pandemia, mas bem interessante pra pensarmos sobre o tema.
One biologist, one million deaths: Expertise between science, social media, and politics during the COVID-19 pandemic in Brazil , Carlos D´Andrea e Veronica Costa no Journal of Digital Social Research, artigo de 2023.
Disputas interseccionais a partir da divulgação científica nas plataformas digitais: as contradições entre cientista e influenciador em Átila Iamarino de Beatriz Blanco, Adriana Amaral e Lucas Goulart, na Revista Fronteiras - Estudos Midiáticos, 2022.
Então, Adriana, vejo que seu texto abordou na maior parte o sucesso acadêmico em relação à interface com a sociedade, seja por pesquisadores freestyle ou por influencers/divulgadores. Mas numa visão internalista, o sucesso acadêmico é bem definido pela sociologia clássica da ciência, que é o reconhecimento. Que se revela não somente em citações, mas em acesso a recursos e a posições de poder (aqui já entrando com um pouco de Bourdieu).
Adri, li seu texto e sinto que estou indo no caminho certo, obrigada!