Episódio 9 - Lacunas na formação de pesquisadores, o que está faltando - Parte I
Oi pessoal, tudo bem?
Essa edição da newsletter vai ser um pouco mais “polêmica” porque sei que a minha visão destoa de uma boa parte das pessoas da área acadêmica de humanas e sociais aplicadas. Por vezes penso ser um completo peixe fora d’agua nessa lida, pelo fato de que sou uma pessoa que é muito pragmática e prática.
Comecei e parei esse texto várias vezes porque fiquei pensando se não ia pesar a mão demais tanto para professores quanto para alunos . Eu entendo que a concentração maior seja na leitura das teorias da área e na escrita da dissertação e/ou tese. E sim, foi uma tese de qualidade que me propiciou avançar na carreira, mas não foi só isso. A tese e a dissertação são resultados da pesquisa, mas não são a única habilidade que um programa de pós-graduação pode te desenvolver.
Existem outras habilidades que precisam ser igualmente ensinadas ou discutidas e apresentadas. Também sei e vivo a sobrecarga que é fazer pesquisa, mas os perfis estão em constante mudança e é necessário que se comece a refletir mais sobre e a implementar medidas que levem isso em consideração.
Ao longo do meu tempo nessa indústria vital da pós-graduação brasileira (como aluna e como professora/pesquisadora) fui coletando algumas lacunas que têm me sido relatadas. Acho todas elas possíveis de mudança, desde que obviamente haja uma ação coordenada entre coordenadores, professores e estudantes.
Acredito que houve uma mudança no perfil dos mestrandos e doutorandos e de como as áreas avançam na forma da pesquisa tanto lá fora quanto aqui no Brasil. Vou me ater especificamente á área de Comunicação de onde falo, mas observo também isso em várias áreas, até mesmo na Interdisciplinar.
Também não acho que um curso de pós-graduação stricto sensu seja capaz de suprir toda e cada demanada, nenhum é. Para isso é necessário que cada um trilhe seu próprio caminho, mas sinto que faltam diretrizes na maioria dos cursos. Observo que algumas coisas precisam ser no mínimo reformuladas pois estão afetando a comunidade em geral. Ainda mais em tempos em que a procura pela carreira acadêmica caiu vertiginosamente (com n razões e motivos, do econômico à saúde mental).
Todos os pontos relatados aqui partem de conversas informais com alunos e colegas e de uma reflexão que venho tentando organizar.
A questão da escrita. - Muitos estudantes ao entrar no mestrado ou doutorado sentem-se intimidados com jargões ou com o estilo de escrita acadêmica. Eu acredito que a escrita acadêmcia pode ter uma série de estilos e pode te dar espaço para ser criativa, mas que ela também deve ser clara, concisa e relativamente acessível aos leitores.
Não acho que deva ser um texto como aquele meme, “para sua vó entender”, mas também não vejo motivo pra transformar um artigo em copia e cola de palavras/ conceitos obscuros. Eu acredito em uma escrita calcada em boas fontes de pesquisa e em boas descrições e análises de dados empíricos. Mas como disse antes, também vejo textos bons que sejam ensaios e disucssões teóricas, mas que não abandonam o leitor por uma falsa erudição fake.
Eu entendo que muita gente começa a escrever com um estilo que tende à imitação, mas veja bem, você está no mestrado ou no doutorado, você pode amar Deleuze, mas você não é Deleuze [substitua por qualquer outro autor], você é um pesquisador em formação.
Você pode viajar o quanto quiser na maionese da sua mente, mas no fim das contas a sua função é também fazer com que as pessoas que lêem o seu artigo comece a compreender aquele tema. Por vezes é melhor engolir a vaidade e fazer uma boa descrição e análise de um fenômeno do que querer botar um monte de conceito um atrás da outro porque achou bonito. As pessoas esquecem que escrever é relatar o processo, o modo e os resultados daquela investigação. É uma narrativa sobre uma pesquisa que durou X anos.
Desenvolva seu próprio estilo, lendo e escrevendo também. Não precisa ter medo. Existem subcampos, eventos e periódicos que vão aceitar o seu estilo, desde que você consiga transmitir a mensagem. A questão é achar a sua turma.
Tente não exagerar nas metáforas, elas são poderosas mas se desgastam facilmente com o uso excessivo. Lembro ate hoje de um artigo que li - que estava publicado em anais de um importante congresso - em que a pessoa falava “as redes sociais são como útero materno”. Tipo assim, what the fuck, a pessoa achou poético ou achou que ia causar?
Ai toda a descrição das redes, de forma absolutamente genérica (eu até hoje não sei de qual rede social digital a pessoa falava), que o artigo trazia não condizia com o que realmente acontece no campo. Era um devaneio travestido de imperativo, o que a pessoa queria que fosse e não o que realmente é. Tenho calafrios toda vez que lembro desse “ensaio”. O que nos leva ao proximo ponto.
1.2 - Título, resumo e palavras-chaves. O título, o resumo e as palavras-chaves são a coisa mais importante da pesquisa no sentido de que as pessoas vão ler ou não o seu trabalho a partir dessa leitura inicial. Quando se faz uma pesquisa bibliográfica esses serão itens de recorte, descarte etc - estou justamente fazendo um levantamento extenso desse tipo pra um trabalho nessa semana e tem muita coisa que não corresponde. O resumo precisa ser claro, precisa trazer o tema de forma clara, os objetivos, o método, o resultado. As palavras-chaves necessitam corresponder exatamente ao que foi feito.
É uma questão de buscabilidade e de encontrabilidade. O trabalho vai ser achado através desses metadados. É central pensar bem e não sair escrevendo qualquer coisa. Resumo é diferente de introdução, introdução terá mais contexto. Resumo precisa ir direto ao ponto. Várias vezes eu leio títulos na minha própria area que eu simplesmente não sei sobre o que a pessoa está falando, ai vou pro resumo, a situação fica ainda mais caótica, continuo não entendendo nada. Frases enormes, sem respiro.
Sobre o título, é legal usar a criatividade e trazer elementos da pesquisa? É. Mas também precisa ser usado com parcimônia e tendo o apoio de um subtítulo que explique melhor aquele tema e/ou objeto. Sem isso fica difícil. Agora se você quer insistir em um título sem esses elementos é por sua conta e risco. Depois não vale chorar que ninguém lê. É uma questão de acesso.
Participação da equipe do projeto POA Music Scenes na TV, divulgando os resultados da pesquisa no canal Octo em 2016. Crédito: Juliana Bortholuzzi
Atuação e gerenciamento de projetos de pesquisa - Esse é um ponto nevrálgico do sistema. Para mim o principal deles é a tradição das humanas/sociais em trabalhos individuais - o bom e velho mito do lobo solitário ou ermitão intelectual - e culto à personalidade.
Conheço colegas que NUNCA participaram de uma rede ou projeto de pesquisa coletivo (também conheço colegas que já me disseram textualmente que não enviam artigos pra lugares/revistas em que não conheçam ninguém). Alguns por ego, outros por medo de perderem protagonismo.
Isso logicamente reflete nos estudantes, que perdem a chance de participar de projetos maiores com pesquisadores diferentes. A diferença de desenvolvimento de experiência de quem participa de projetos coletivos é enorme. Além do aprendizado teórico e conceitual, os projetos permitem trocas, e permitem um lado bem “pé no chão”, gerenciamento de tarefas, de verbas (famigerada prestação de contas), compreensão de editais, organização de relatórios e reuniões, editoração de livros e periódicos, produção de material pra divulgação científica, tudo que faz parte dos bastidores do fazer científico e que para muitos é pensado como “tarefa menor”.
Lembro da primeira vez que eu abri o sistema de uma das agências e mostrei pra uma estudante de IC como era feita a prestação de contas. Ela me disse, “nossa eu não imaginava que dava esse trabalho todo!”. Aprender sobre a responsabilidade com o dinheiro público também é uma excelente lição. Eu gostaria muito de ter aprendido isso durante os meus anos de mestrado e doutorado, mas infelizmente não tive essa oportunidade e dei muita cabeçada aprendendo sozinha.
Outra vez, uma colega que considero brilhante e que hoje coordena um projeto que participo, em meio a um evento, mostrou no sistema de uma agência a quantidade de projetos submetidos e o número de vezes em que foi recusada . É desse tipo de atitude que precisamos.
O preparo do trabalho e a administração dos grupos são excelentes momentos de aprendizagem porque afinal de contas, lidamos com gente, porém vejo que tem curso de humanidades/sociais que acha mais importante pensar em pessoas hipotéticas de um determinado grupo social do que em encarar essas pessoas na realidade.
Uma das coisas que mais me orgulho é de ter proporcionado várias possibilidades de projetos aos colegas do meu laboratório de pesquisa, regionais, nacionais e internacionais. Agora estamos numa fase de novas captações de editais , mas espero em breve retomar a essa circulação.
Apoio tecnológico e de softwares - esse ponto é uma demanda importante e ainda pouco trabalhada nos PPGs de humanidades. Desde softwares de transcrição, ou os que facilitam a organização de bibliografias como Zotero, por exemplo, até alguns usos mais complexos para revisão de literatura ou usos mais parrudos para análises de dados.
Em 2022 , minha orientanda Beatriz Blanco ministrou um workshop básico sobre filtragem de dados a partir do Excel - ou seja - algo relativamente simples, mas que facilitam a vida de quem vai fazer análise de conteúdo por exemplo.
Alguns grupos de pesquisa da área tem se aprofundado nisso, porém sempre fica algo localizado com iniciativas bem específicas, sem ser algo possibilitado para um numero maior de estudantes. Acho que foi em 2020 eu e a colega Raquel Recuero (UFPEL) fizemos uma espécie de workshop metodológico online entre nossos grupos de pesquisa. Novamente uma iniciativa localizada. Falta isso entrar mais oficialmente nos currículos dos programas.
Ai percebo muito pouca preocupação com esses processos mais práticos e aplicados. Não acho que todo mundo necessite usar softwares, mas algumas facilidades permitem uma perda menor de horas que podem ser dedicadas a leitura ou à escrita por exemplo. Esse é um ponto facilmente resolvível, com workshops remunerados a profissionais e até mesmo a alunos que utilizam tais ferramentas.
Esses eram meus três primeiros pontos, vou encerrar aqui pois a cartinha já tá grande demais. A ideia não é responsabilizar ou levantar culpas, mas pensar em possíveis soluções rumo a uma maior profissionalização, pois desculpem ai, acho um certo amadorismo enquanto área não enfrentarmos esse tipo de questão.
E vocês, quais são os pontos que vocês indicariam como lacunas?