Episódio 6 - "Changes are taking the pace I'm going through"
Ou Bowie e fragmentos afetivos sobre mudanças na minha vida acadêmica
A cartinha de hoje é um pouco diferente, um pouco mais pessoal. Eu tinha rascunhado algumas coisas super úteis sobre organização do ano em relação a publicações, mas uma efeméride me atravessou e vou deixar esse tema mais prático pra próxima newsletter.
Há exatos 8 anos em uma fria manhã eu estava sentada em um café na estação de central de trem (Hauptbahnof) de Düsserldorf - no oeste da Alemanha - quando abri o celular e recebi a notícia da morte de David Bowie. Fiquei encarando a tela por vários minutos pensando, não pode ser, não é real. Eu havia viajado boa parte da noite de ônibus de Hamburgo - onde eu e o marido fomos comemorar o primeiro ano de casamento, fazemos aniversário de casados no dia 09/01 (quem vai comemorar aniversário de casamento em Hamburgo, naquela geleira do cão? Nós rs) - até ali e estava fazendo tempo na estação bem cedo até dar o horário de ir para o aeroporto onde pegaríamos um vôo no início da tarde e voltaríamos pra casa em Londres, onde estávamos morando por conta do meu pós-doutorado.
Foto do mural em homenagem a David Bowie no bairro de Brixton. Tirei essa foto uns dias após a sua morte
Para mim Bowie era uma daquelas entidades artísticas atemporais que nunca morreria e naquele momento eu imaginei ele voltando ao seu planeta ou efetivamente virando uma estrela. Chorei o caminho todo até o aeroporto, chorei no vôo e chorei na chegada em Londres, onde muitos fãs prestavam homenagens na rua e nos pubs. Foi um privilégio ter podido acompanhar essas homenagens e ver as ruas tomadas de fãs. Foi também muito doido e significativo estar justamente nessa conexão Inglaterra/ Alemanha (a trilogia de Berlim gravada no Hansa Studio que o diga - estive lá um tempo depois). O meu choro foi para além da morte e de pensar no legado de um dos meus maiores ídolos tinha outros componentes.
Minha vida como pesquisadora e fã de certa forma tinha (e tem) uma ligação muito forte com uma série de valores e temas que Bowie sempre abordou em sua arte: ficção-científica, performance/persona, transformação e mudança constante, uso das mídias, celebrificação, subculturas, moda, intertextualidade, cultura digital, questões de gênero, só pra ter uma ideia. São essas questões/temas que sigo perseguindo no meu trabalho de formiguinha de construir arcabouços teóricos-metodológicos para analisar a cultura pop.
Foi ali naquele momento de materialização da notícia que eu entendi o quanto tudo aquilo havia me influenciado e havia impregnado o meu pensamento e a forma como eu vivo essa vida. Foi um momento bastante definidor.
Peço agora uma breve licença para algumas digressões que me levaram às ideias - que talvez soem doidas - desse texto. Ontem alguém postou um meme la no X (antigo Twitter) falando sobre mudar para cidades em que não se conhece ninguém e começar do zero. Eu respondi que faço e faria isso tantas vezes quanto forem necessárias. Faz pouco mais de um ano que passei por uma mudança dessas.
O que eu não comentei naquele momento foi que: a) toda vez que rola algum tipo grande de mudança na vida eu fico ouvindo essa música em loop e pensando nas fases de Bowie; b) que a mudança de cidade é um tema quase recorrente para muitas pessoas que entram e/ou vivem no ambiente acadêmico; c) que no workshop de carreira para jovens pesquisadores que participei na Aoir a questão de mudança foi uma das perguntas e discussões que mais renderam - até porque são poucos eu diria quase raro os pesquisadores que conseguem se estabelecer em sua própria cidade ou se mudar pouco; d) que esse era - ainda - um tema constante e por isso doloroso em várias sessões da minha análise.
Toda crítica e clichês escritos sobre Bowie trazem essa marca através do apelido hoje bem demodê de “camaleão”, mas é fato que as mudanças estéticas, sonoras, visuais e suas moradas por diferentes cidades marcam e tematizam sua obra de forma central. Dessa forma, é um pouco nisso que sempre me apaguei cada vez que precisei mudar em função do meu trabalho (foram 8 vezes em 23 anos). Mas tenho plena consciência de que apesar de muito legal, essa também é uma forma que encontrei para amenizar o fato de que essas mudanças me marcaram profundamente. Longe de mim usar a obra de Bowie para um post estilo LinkedIn “o que podemos aprender com Bowie nas mudanças da vida acadêmica” risos, tô fora pois seria contrário ao seu próprio legado !
A maioria dos colegas e mesmo alunos e ex-orientandos que eu conheço, eu aqui inclusa, não tem e não tiveram o privilégio de escolher onde - em qual cidade, estado, instituição - iriam trabalhar. Para mim essa é uma das coisas mais devastadoras e problemáticas do mundo acadêmico, ou ao menos, para quem sempre quis uma carreira na pesquisa, que foi o meu caso, pois eu não queria apenas lecionar, eu queria efetivamente fazer parte da pesquisa em nível de pós-graduação stricto sensu. Devastador, pois não existem garantias e não existem vagas suficientes para todos. É uma disputa cruel, assimétrica e sem grandes lógicas. O que eu acho ainda mais tenebroso é pouco falarmos sobre isso enquanto classe e no quanto essa insegurança nos afeta. A falta de escolhas, especialmente em um Brasil tão desigual.
As mudanças e as andanças artísticas de Bowie a partir de escolhas estéticas são completamente diferentes das situações em que jovens pesquisadores - e nem tão jovens assim como eu - precisam optar por uma mudança, de tema, de rota, de cidade, de país. De qualquer forma penso que essa é uma discussão que impacta a todos e que ainda não ganhou a importância devida. . Nos últimos anos os debates sobre classe, raça, gênero e maternidade na ciência tem se amplificado e gerado algumas transformações nas universidades e agências de fomento, mas ainda é muito pouco e a passos muito lentos (a título de exemplo, o número de pesquisadoras com Bolsa de Produtividade no país é de 35% há 20 anos e ainda não subiu. Esse dado foi divulgado la pelo núcleo de estudos Parent in Science. Com certeza se observarmos gênero e raça esse número será ainda menor).
Estive dois dois lados do balcão: tentando me colocar profissionalmente em instituições em cidades onde eu não queria morar, mas nas quais consegui me estabelecer e trabalhar no que eu queria, sobretudo no início da carreira; e por outro lado desfrutando de uma “certa” estabilidade por mais de uma década onde eu queria estar. Até que a instabilidade, precariedade e insegurança em fazer pesquisa no país - se for fora das instituições públicas ainda coloque umas doses a mais - que fica ainda mais acentuada nos últimos anos veio novamente bater na minha porta. De qualquer maneira, não é minha intenção me colocar como parâmetro, cada história pessoal é diferente e peculiar.
Entram em jogo questões extra lattes bastante complexas como cuidado com familiares, cônjuges, filhos, pets, áreas e subáreas de atuação, estilo de vida, entre tantas outras. Assim a Academia ainda privilegia mais quem? A resposta é bem óbvia quando a gente sabe quem assume a maior parte dos cuidados com filhos, pais, pets. Certa feita, uns anos atrás, ouvi um colega dizer que fazia 8 anos que não pisava em um supermercado. Achei tão surreal que nem tive resposta.
Também entram em jogo relações, networking, se o orientador da pessoa é famosinho (não foi meu caso por exemplo, meu orientador largou a Academia e foi fazer outra coisa há anos atrás) e se tem algum poder dentro do departamento. Ja vi caso de gente que passou em concurso público tendo publicado dois artigos até aquele momento e, o que é pior, sem nunca ter dado aula, mas com uma prova que reprisava ipsis litteris a timeline de um certo livro de teoria. Zero autenticidade e autoralidade (valores que eu ainda prezo muito). É a vida né. E os modelos dos concursos para professor são do tempo que meia duzia de pessoas entravam na universidade, estão completamente defasados.
No meu caso por exemplo, e no presente momento da minha carreira, já sei por experiência própria que não tenho condições de morar em cidades muito pequenas e afastadas de grandes centros - morei durante um semestre durante o mestrado no interior do Paraná e voltei pra casa dos meus pais em depressão profunda e com medicações pesadas. Para desenvolver meu trabalho e manter projetos financiados, bolsa de produtividade, laboratório de pesquisa, etc, preciso estar vinculada a uma instituição com mestrado e doutorado, então não seria possível ficar apenas em um lugar que só tem graduação. Ainda tem a minha subárea específica.
No caso das públicas, o concurso por exemplo é através de disciplinas de graduação. Posso dizer que conto nos dedos os cursos de graduação nas públicas que possuem disciplinas exatamente do que eu ministro, obviamente, ja lecionei “cadeiras” (acho que só falamos assim no Rio Grande do Sul ?) que não tinham nada a ver com o que eu pesquiso ou então aquelas básicas. Mas para o concurso há pessoas habilitadas e que vão conhecer aquela bibliografia em geral melhor que eu que há 23 anos voltei meu foco pra comunicação digital, estudos de fãs e cultura pop, numa intersecção disso tudo e não leio com profundida nada sobre as áreas mais tradicionais da comunicação ha 86 anos.
Nesse sentido, trabalhos não acadêmicos são mais possíveis de uma certa escolha em termos de moradia, por exemplo. Dito tudo isso, gostaria de deixar claro que eu provavelmente não trocaria minha trajetória profissional toda cheia de zigue e zagues, idas e vindas por algo mais “consolidado”. Vejo nisso um ponto de força e até de flexibilidade. Consegui uma daquelas proezas pra quem veio de uma família sem posses que é trabalhar com e no que gosto e até ser feliz e reconhecida pela minha pesquisa. A cada dia tento fazer as pazes com as decisões que tomei, pois elas estavam dentro das minhas circunstâncias e possibilidades. Consigo me virar em vários lugares, departamentos, culturas. Talvez por isso eu consiga encarar coisas tão pesadas de forma leve e tente me manter fiel aos meus valores.
O ônus é claro vem com uma certa dose de sofrimento ao qual não somos imunes. Chegando aos quase 49 anos, 23 deles vividos nessa indústria vital da universidade brasileira gostaria que fosse diferente, mas não é. Enfim, todo esse texto não é pra desanimar ninguém, mas como disse o Fabricio Pontin em um dos seus tweets pra que as pessoas entendam como a realidade se apresenta agora.
Ai eu volto à Bowie e penso que:
“Every time I thought I'd got it made
It seemed the taste was not so sweet
So I turned myself to face me
But I've never caught a glimpse”