Oi pessoal, tudo bem? Espero que sim. Esses primeiros dias de março tem sido muito cansativos com toda a loucura do retorno pós-carnaval, Sucupira, entregas de artigos, volta às aulas e muitos pareceres.
Em primeiro lugar gostaria de agradecer especialmente aos colegas brasileiros e dos outros países da América Latina que enviaram propostas de trabalhos, mesas, painéis etc para a conferência da Aoir 2025. Tivemos um recorde de submissões ;) o que comprova a força da nossa pesquisa em internet. Obrigada pela confiança.
Dito isso, e a fase da organização do evento em que me encontro acabou me levando ao nosso tema de hoje. A escrita de pareceres para artigos e projetos. Muito se fala sobre escrita acadêmica, de artigos, dissertações, teses e projetos, mas pouquíssimo se fala sobre a escrita de pareceres. O que me leva ao problema dos pareceres ou da escrita dos mesmos.
Aproveitei pra ir perguntar ao Chat GPT uma definição de parecer científico. Não foi ruim não. Eis a resposta dele: O parecer científico é um documento técnico elaborado por um especialista com o objetivo de analisar, avaliar e emitir uma opinião fundamentada sobre determinado tema, estudo, projeto ou pesquisa. Ele serve para orientar decisões, validar metodologias ou indicar possíveis correções em estudos científicos.
Claro que essa definição que inclui imparcialidade (rs) e “especialista”, é muito calcada em uma idealização, que sabemos que não é sempre assim. Fui atrás de alguns artigos online também, mas a definição não varia muito.
Em conversas informais com colegas (não vou citar os nomes, mas é isso ai) discutimos o grande problema que é encontrar bons pareceristas para revistas, editoras etc. Há uma observação geral de que o sistema está super lotado, precarização do trabalho, entre outras questões que mereceriam um texto específico. Uma hora falo sobre isso, mas até o momento é o sistema vigente. Podemos discutir se ele ainda é adequado no contexto que vivemos? Sim. Mas ai também precisamos de uma reformulação que preveja um outro tipo de avaliação.
Afinal, se as pessoas precisam publicar, elas também precisam emitir os pareceres científicos de avaliação. É uma via de mão dupla.
ATUALIZAÇÃO - OBS IMPORTANTE: Cabe esclarecer que há uma diferença entre ser membro do corpo editorial de uma revista ou periódico e ser Revisor ou Parecerista (ambos os termos são válidos) Ad Hoc. O membro de corpo editorial é um parecerista que tem compromissos mais formais com aquela publicação. Normalmente ele é chamado para fazer no mínimo 2 pareceres por ano. O revisor Ad Hoc é chamado pela sua expertise de acordo com a necessidade da revista e portanto ele não vai constar na listagem do site. Favor não confundir revisor Ad Hoc com revisor de português. Dúvidas em relação a isso, confiram no documento da CAPES sobre o preenchimento de Lattes, no seguinte link: https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/713008 . Dica certeira da colega Clarice Greco
O tipo de parecer mais comum é o chamado “Blind Peer Review”, ou revisão por pares cega. Esse formato tenta eliminar o máximo possível os vieeses. Nesse processo, há geralmente duas formas, a Single Blind e a Double Blind.
Na single blind, os pareceristas sabem que são os autores, mas os autores não sabem quem são os pareceristas. Normalmente os pareceres de editais para projetos em rede ou de produtividade ou de eventos por exemplo entram na categoria single blind. Para produzir um parecer sobre um projeto em rede por exemplo, o parecerista vai levar em consideração a experiência da equipe, suas publicações, orientações, etc. Então para isso o revisor precisa saber quem são os envolvidos na proposta. No entanto, o parecerista fica com sua identidade oculta.
Já a forma mais comum é a Double Blind, na qual o nem o autor nem o parecerista sabem quem é quem. Esse modo tenta preservar e evitar os vieses pessoais, mas obviamente que em determinadas áreas e em estilos e temas de escrita - ainda mais em um contexto nacional, a identificação é quase inevitável. De toda forma, ela ainda tenta preservar os ânimos e a crítica. Certa feita quando era editora de um periódico, recebi ameaças de um autor revoltado pois queria que eu revelasse quem havia recusado seu artigo.
Foi um daqueles momentos em que eu tive certeza que ele só me ameaçou porque eu era mulher e porque achava que eu cederia. Respondi com as normas da revista e por fim tive que bloquear o sujeito, uma vez que foram vários e-mails ameaçadores em tom de “mas eu quero muito conhecer quem foram esses especialistas que me recusaram”. O tom era um tanto psycho e já me imaginei envolvida em um true crime acadêmico.
Um outro modo pouco utilizado é o de Open Review ou Revisão Aberta. Algumas revistas como a Participations, na qual já publiquei, trabalham com esse sistema, no qual tanto autores quanto pareceristas trabalham em um documento aberto e vão gerando discussões sobre o artigo. Ao meu ver é um modo bem interessante que por um lado evita que os pareceres sejam tão rudes, mas por outro, dependendo na mão de quem cair - no caso de rusgas pessoais - pode ir exatamente para um outro viés. Enfim, prós e contras.
No caso específico em que meu artigo foi aceito e publicado em 2021, o parecer fez com que eu revisasse a ordem e a estrutura do artigo e tive bastante ajuda do editor, Prof Martin Barker (fundador da revista Participations e um dos maiores especialistas em fãs de Tolkien que nos deixou em 2022. Rest In Power!) . Ele meteu a mão no texto e no debate com os pareceristas já que foi um aceite com major reviews que me deu bastante trabalho.
Tenho certeza que bons editores são bons pareceristas e vice-versa. Digo isso porque nem sempre precisamos acatar o parecer, podemos e devemos responder o parecer de forma a demonstrar a diferença de abordagens. A colaboração entre editores e pareceristas é o elemento central para a qualidade das publicações conforme indicam Trzesniak, Plata-Caviedes e Córdoba Salgado (2012).
Nos últimos dias, conversando com amigas e colegas fui coletando algumas de nossas experiências como editores de dossiês, de periódicos ou de editoras de livros acadêmicos sobre tipos de pareceres que não ajudam:
Pareceres genéricos demais e adjetivados seja para destruição e crítica excessiva ou para elogios demasiados. O famoso meme do Parecerista n.2. Exemplo: “o artigo é muito bom/ muito ruim/ gostei / não gostei”. Geralmente a pessoa escreve umas duas linhas no máximo de forma completamente opinativa odiando ou amando. Há muitos anos eu recebi um dos pareceres mais grosseiros sobre um artigo a respeito de autoetnografia em que o parecerista simplesmente desdenhou desse método e disse que “era coisa de quem queria aparecer”. Não me deixei abater, agradeci à editora, retirei o artigo e enviei para outra revista na qual fui aceita com revisões mínimas;
Parecer que analisa o artigo não pelo que ele é ou faz, mas pelo que o parecerista gostaria de ter feito. Aqui temos um clássico. A pessoa não analisa a estrutura em si, argumentação, revisão literária, métodos etc como foi proposta, mas sim a partir de um ideal a partir do seu próprio viés. Um exemplo extremo. Vamos supor que eu vá analisar um artigo que trata da análise de narrativas de uma determinada série de ficção em uma determinada plataforma de streaming. Em vez de contribuir com possibilidades de discussão, análise, autores e dados eu recuso o artigo dizendo que ele deveria tratar dos fãs da série. Se o objetivo for analisar audiência/fãs, o parecer pode e deve cobrar métodos e debates em torno desse tema, mas se não for o objetivo ai não faz o menor sentido cobrar isso. Poderia ser ao contrário também;
Parecer destrutivo enviesado. O parecerista não ajuda, pesa a mão em críticas sem apontar nenhuma forma de melhoria para o artigo. O que seriam essas melhorias: sugestões de leitura, apontamentos sobre refinamento da argumentação e da pergunta de pesquisa, ajustes e questionamentos sobre a bibliografia, dúvidas e apontamentos que efetivamente façam o debate e os resultados daquela pesquisa avançarem;
Fazendo minha lição de casa, perguntei também o que é considerado por elas/eles um bom parecer. Eis algumas respostas:
“Construtivo, educado e sem achinelear”
Para quem não está acostumado ao verbo gaúcho “chinelear” ou “achinelear”, nesse caso específico a colega quer dizer que não é para humilhar a autora/autor/autores do artigo de forma grosseira e pessoal. Mas ai desmembrando mais um pouco, um bom parecer deve:
Apontar méritos. Depois indicar o que falta ou está insuficiente. Explicar o que falta, o que melhoraria. Justificar bem. As vezes, o artigo é coerente com o que propôs, mas a proposta ou premissa básica não se sustenta, é ultrapassada, etc. Tem que apontar isso também. A originalidade e atualidade da proposta.
Essa falta ou insuficiência pode ser decorrente da falta de uma revisão bibliográfica adequada e que aquele tema já tenha sido exaustivamente discutido, o que descaracteriza a “inovação”, ou mesmo a insuficiência dessa bibliografia faz com que o argumento possa estar muito fragilizado por já ter sido discutido exaustivamente por outros autores.
Um exemplo simples da minha área. Estamos em 2025 e a pessoa começa o artigo querendo conceituar o termo “cibercultura”. Desde o fim dos anos 90 vários autores já fizeram isso. Inclusive, na metade dos anos 2010, vários artigos apontaram que talvez esse termo não tivesse mais seu sentido original dada a popularização da internet, etc. Tudo isso está bem documentado no histórico de publicações sobre o tema, tanto internacionais quanto nacionais. Isso significa que eu não preciso saber as origens do termo e a que ele se refere? Óbvio que não. Justamente eu preciso conhecer para optar se vou utilizar ou não e a partir de qual abordagem.
No entanto, isso não significa que um artigo vá se sustentar somente a partir desse debate e que eu precise retomar tudo que foi escrito nos últimos vinte anos. A única forma desse argumento ter algum caráter de avanço é se ele trouxer um argumento ou fato totalmente diferente do que os outros autores já fizeram. Dessa forma, o ideal é apontar a partir de quais autores está entendendo aquela discussão conceitual. Pode ser até mesmo em um parágrafo ou nota de rodapé para focar em discussões mais importantes.
Outro ponto central é a questão da justificativa, sobretudo, nas escolhas de objeto e nos rumos e detalhes do método escolhido. Essas justificativas são centrais para a compreensão do leitor e um bom parecer vai questionar isso, vai levantar dúvidas e trazer questionamentos.
Em um artigo que publicamos (eu e mais 3 colegas) em 2024, um dos pareceristas fez perguntas que nos fizeram pensar por umas duas semanas. O artigo ficou muito melhor solucionado quando finalmente conseguimos respondê-las porque era algo que tinha me passado batido.
No caso de editais específicos, normalmente o bom parecer também vai indicar se faltam ou se estão mal descritos elementos que são obrigatórios como cronograma, plano de divulgação científica etc.
Dicas rápidas sobre a escrita de pareceres
Recapitulando algumas dicas que coletei a partir dos colegas e da minha própria minha experiência para a escrita de um parecer científico de qualidade: O primeiro ponto é indicar questões de estrutura lógica na organicidade do artigo/projeto. Depois disso, análise dos conceitos (aqui entra o debate sobre a revisão de literatura também) e da qualidade da argumentação, seguido de justificativas e métodos de análise. Por fim, o parecer requer uma linguagem direta e clara, mas sem agressões pessoais, ao tema, etc. Tudo isso para não virar meme ao não se transformar no famigerado Parecerista n.2 e nem entrar numa “listinha” de péssimos pareceristas que todos os editores de periódicos tem (eu tenho a minha, mas não será revelada por aqui). E claro, contribuir de alguma forma para a área.
Por hoje era isso, that’s all folks!
Dicas e links:
Adorei participar do episódio Tudo é Fandom! com os guris do podcast Viracasacas. Acho que conseguimos situar o debate e ainda fazer algumas piadas sobre esse tema - e ainda falar de toda a questão do Oscar, Fernanda Torres, etc.
Estou completamente viciada na série The Pitt que passa na HBO/Max. Nunca me imaginei vendo séries de hospital mas a qualidade das tramas pessoais e dos personagens me pegou. Tenho inclusive falado muito sobre isso com o amigo e escritor Gustavo Czekster. Um destaque é a Dra. Melissa King (interpretada por Taylor Dearden) , sobre a qual o colega Fábio Fernandes escreveu um texto muito bacana em sua newsletter sobre neurodiversidade no LinkedIn.
Ainda sobre séries, para quem quer se aprofundar no tema Séries de Conforto (como é de certa forma o caso The Pitt ), recomendo o livro Séries de conforto: a ficcionalização de instituições na TV, resultado da tese de doutorado de Melina Meimaridis e publicado em 2023.
E por fim, o melhor filme de 2024, sabemos que a Academia não ia se arriscar tanto ao dar um Oscar de melhor filme para uma animação, mas merecia. Flow me deixou hipnotizada e voltei para casa abraçando meus gatos e chorando. Apesar disso, é um filme esperançoso e cheio de camadas de significados, ao mesmo tempo poético e realista. O coração da gateira aqui - ainda mais por ter tantos felinos pretos na minha vida - se desmanchou.