Episódio 21 -Mergulhando em um projeto de pesquisa
Escrevendo projetos nas vésperas de um fim de mundo que nunca vem
Cada projeto é meio que a busca por um navio afundado nas profundezas
Oi pessoal, espero que estejam bem nesses dias quentes, em meio a chuvas e ao descaso dos governos estaduais e prefeituras. Janeiro tem sido um mês desafiador em vários sentidos, mas sobretudo no volume de trabalho para quem está de recesso. Fazia muito tempo que eu não trabalhava tanto num início de ano, mas tudo bem porque mais adiante eu compenso com descanso.
Por motivos que não vou me alongar por aqui, não tenho como “sair de férias” em viagem nesse momento que me faz estar em um grande entre-lugar ou “in between days” (estou feito a Marina Lima “eu espero, acontecimentos”) , então vou alternando algumas atividades divertidas e encontros com amigos com o que eu preciso fazer. Organizar um evento do tamanho da conferência da Aoir no Brasil tem sido bastante complexo e mesmo com uma preparação com muita antecedência há tanto por fazer. Felizmente “na minha outra vida” fui produtora de eventos - dentre as várias funções que ja exerci - consigo me utilizar de algumas habilidades adquiridas para tocar isso.
Esse mês tem sido completamente focado na escrita de projetos para alguns editais e decidi que iria escrever um pouquinho sobre processo de escrita dos mesmos.
Vou focar mais no meu modo e nas motivações do que naqueles aspectos mais tradicionais como objetivos, pergunta/problema de pesquisa, etc. Para isso, teria várias recomendações, porém vou destacar duas.
O livro Métodos de pesquisa em comunicação: Projetos, ideias, práticas do Luís Mauro Sá Martino (Cásper Líbero) que saiu pela editora Vozes em 2018, além de bem escrito e divertido traz muitos exemplos, sobretudo para quem está se aventurando no mundo da pesquisa pela primeira vez.
A segunda dica é a aula sobre Projetos de Pesquisa da Tatiana Vargas Maia da UFRGS no curso de Escrita Acadêmica da Rosana Pinheiro-Machado lá de 2020. A Tati arrasa nesse quesito e é extremamente didática.
Motivação e acontecimentos pessoais
A primeira questão que me toca quando preciso escrever um novo projeto de pesquisa é a motivação pessoal [oi você que acha que a ciência e a pesquisa são isentonas de discussões mundanas, não elas não são, próximo ponto rs]. Claro que só a motivação pessoal não faz uma questão se transformar em um projeto, mas no meu caso ela é meio que o epicentro de onde eu parto para construir argumentos.
Vou tentar dar um exemplo mais prático, ali por 2012 ou 2013, não lembro mais, me interessei muito sobre a questão da performance do gosto a partir de alguns artigos e livros de alguns pesquisadores da área das materialidades e da musicologia que tinham a ver com fenômenos que eu estava vendo expressos nos objetos empíricos - os ativismos de fãs - que eu vinha observando.
Assim surgiu um dos projetos que me fez mais pensar nas manifestações identitárias nas redes a partir desse viés teórico e metodológico. A partir de algo específico e nichado, consegui ter resultados que estavam articulados com fenômenos que eram não só culturais como políticos e que apontavam para discussões macro.
Depois disso, muita água rolou, estudei mais a fundo a questão dos ativismos de fãs, da relação de identidades dos fandoms e políticas; estudei as especificidades dos estudos brasileiros sobre fãs e audiências na internet e no meu projeto pessoal atual que se encerra dentro de alguns meses estudei as disputas e “guerras culturais” entre fãs, influenciadores e plataformas digitais tendo as relações entre cultura pop e identidades como vetor.
Ao longo dos quase 4 anos de projeto, ele foi logicamente atravessado por uma avalanche de acontecimentos: 2 anos de pandemia, o que gerou vários atrasos e lentidões; a perda da minha gata Nanã; a demora da minha recuperação da Covid-19 - perdi a voz por quase dois meses; pelo encerramento do PPG no qual eu trabalhava e como resultados uma depressão bem severa; uma mudança de cidade e instituição e pela compra do antigo Twitter (atual X) pelo agora neonazi saído do armário Elon Musk - o que gerou questões em torno da coleta de dados, da API, entre tantos outros problemas éticos e tecnopolíticos; marido com AVC e a perda da Princesa.
“A negatividade é inimiga da criatividade. (…) Deixe as coisas ruins que o mundo oferece nos seus escritos, não na sua vida” - David Lynch.
Trouxe esses exemplos que lembro de cabeça simplesmente pra mostrar que projetos de pesquisa são sempre feitos em fluxo contínuo, embora submetidos dentro dos prazos. Além disso, no meio do caminho muita coisa acontece na vida por mais que tenhamos planejamentos e cronogramas. Desconsiderar isso é gerar níveis de ansiedade que nos deixam doentes. Não faz sentido.
Queria deixar claro que para mim especificamente não consigo trabalhar em temáticas nas quais eu não acredito. Também não consigo trabalhar em algo só porque “parece estar na moda” ou porque “está bombando” e vai render aparições na mídia etc. Nunca consegui ser estrategista dessa forma, acho que isso boicota a criatividade. Eu só invisto em ideias nas quais eu tenha conexões reais. Eu sei, nesse quesito sou um tanto romântica. Mas se ali não tiver algo meu, autoral, eu não vou conseguir me mobilizar e o resultado não vai ser a contento e vou enjoar.
“You fall in love with the first idea, that little tiny piece.
And once you've got it, the rest will come in time.” (David Lynch)
Mas voltando aos projetos desse mês. Tirei 10 dias para literalmente mergulhar em bibliografias - relendo coisas que li ao longo de 2024 - e retirar análises e resultados do projeto anterior. O meu processo é sempre esse, apesar de eu ir escrevendo um pouquinho a cada dia - ou sempre que possível - vai chegar um momento em que vou desaparecer e mergulhar nos insights e discussões teóricas.
Atualização 27/01: Esqueci de falar algo importante que é ao longo do último ano de projeto eu sempre abro um arquivo e vou jogando novas ideias, comentários sobre leituras e observações gerais sobre o campo, além de já ir fazendo links entre os artigos que publiquei no período para achar resultados e tb lacunas.
Nesse período da escrita, meu escritório vira um caos, com livros, anotações em cadernos, fotos e materiais por todo lado. O computador com mil abas abertas de excel, word, pdfs. Deixo o celular no modo avião e não olho mensagens - só se for algo urgente dou uma olhadinha quando vou comer ou ir na outra academia. Não faço pomodoros e afins, escrevo no mais enloquecido modo de fluxo de consciência. No entanto, uma coisa que faço pra adiantar serviço é a medida em que vou fazendo as citações já vou copiando a referência lá no final. É um ganho de tempo, mas mesmo assim tem que considerar que alguma coisa sempre se perde.
Enquanto escrevo, eu não ouço nada que tenha pessoas falando (TV, podcast, etc) e só escuto música. Geralmente ou coisas instrumentais ou álbuns que nunca escutei, bandas novas. Deixo pro finalzinho ouvir as coisas que eu gosto pra me recompensar.
Tem vezes que eu levo uns dois ou três dias só pra começar, mas como na frase do Lynch ali no intertítulo, depois que eu me apaixono pela ideia, ai só vai. O que geralmente acontece é que tenho umas 3 ou 4 ideias pra projetos de pesquisa, depois refino pra chegar em 2 e dessas duas decido por uma única temática. Não posso dar spoilers do novo projeto, mas apesar de ser uma continuidade do que venho pesquisando é também uma ruptura, pois se trata de uma abordagem que nunca tinha conseguido propor.
[Um pequeno parêntese sobre organização. É legal ter métodos de se organizar pra escrever? É. Mas vejo gente que fica tanto tempo procurando o método ideal, a ferramenta digital que vai salvar o processo todo, que a pessoa se perde e não faz o que tem que fazer. Além disso, mesmo a ordem requer o caos, tem horas que o que funciona é o respire e escreva].
“Ideas are like fish. If you want to catch little fish, you can stay in the shallow water. But if you want to catch the big fish, you've got to go deeper.”
(David Lynch)
Se não tem um pouquinho de caos, não tem graça
E assim desse jeitinho caótico em que não deixo nem a faxineira mudar uma agulha da minha mesa pra não me perder, vou seguindo o fluxo da escrita mais ou menos da seguinte forma, primeiro contextualizando e respondendo perguntas justificando porque aquele fenômeno tem importância; depois teorizando a partir da revisão bibliográfica e as questionando a partir do problema de pesquisa e apontando caminhos possíveis com os objetivos; por vezes tenho hipóteses, em outras não; na sequencia apresentando e descrevendo o objeto e os métodos para dissecá-lo, além é claro de questões mais práticas como metas e resultados; plano de divulgação científica (já falei em outra newsletter sobre a organicidade desse tipo de plano), o fatídico cronograma, sem esquecer que algumas agências tem pedido em relação à Ética de Pesquisa, o Plano de Gestão de Dados.
Tenho utilizado o software de código aberto PGD-BR desenvolvido pelo IBICT - Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia - (a recomendação foi do Tarsis Salvatori), mas tem vários outros. O PGD-BR gera uma série de perguntas que a gente vai respondendo sobre os dados do projeto, sejam eles qualitativos ou quantitativos e ao final ele gera um documento editável. Ele é muito fácil de ser usado, embora algumas nomenclaturas da área da Ciência da Informação às vezes possam gerar algum tipo de dúvida, mas ai é recorrer a bibliografia ou aos profissionais e colegas da área.
Embora eu sempre faça um esqueleto dos tópicos (mais ou menos como ali no parágrafo de cima) a partir de modelos que já tenho, eu não escrevo nessa ordem. Vou alternando o que tenho mais dificuldade com o que acho mais fácil. O que é mais descritivo com o que é mais teórico pra não me entediar e me divertir e depois organizo a estrutura. Eu sei que parece meio doido dizer que me divirto escrevendo projeto, mas embora eu me estresse, eu também me divirto e essa é a beleza do que gostamos de fazer. Nada é perfeito.
Sobre o título do projeto, eu sempre o nomeio de cara e vou mudando ao longo da escrita. A probabilidade é que vou decidir o título na hora da submissão, quase numa espécie de sorteio. Mas lembrando que o que tiver no título precisa de alguma forma ser referenciado ao longo do projeto. Outro ponto importante é ir revisando e editando o texto em alguns intervalos do fluxo de escrita. Deixar tudo pro final é muito arriscado, mas claro que sempre alguma coisa vai passar. É preciso viver com isso.
Por fim, uma última dica, leiam e releiam o edital várias vezes. A cada ano as agências mudam os critérios, termos etc e tem sempre uma pegadinha do malandro. Já perdi um edital porque não vi que o numero correto de integrantes da equipe principal previa uma pessoa a mais. Foi um erro tão bobo, mas me fez ser desclassificada. Peçam ajuda aos colegas se estiverem com dúvidas, agora em janeiro eu passei dias falando com colegas que também estavam em processo de submissão, confirmando “isso aqui que tá escrito é isso mesmo?” e coisas do tipo.
Procurem seguir a ordem indicada dos tópicos no edital pra construir a estrutura e sobretudo facilitem a vida dos avaliadores, se possível destacando os pontos mais importantes.
No mais, bebam muita água, evitem doomscrolling, façam alongamentos, olhem uns memes pra desopilar no fim do dia e em hipótese alguma deixem o arquivo do projeto aberto no computador se tiverem gatos, não corram o risco de ter o projeto todo desformatado com kkkyjgaoekwkapaorh59 ou outras palavras desconexas porque eles vão colocar suas patinhas no teclado risos.
Pra fechar uma dica amiga, não fiquem dando spoiler dos seus projetos/artigos nas redes, lembrem que algum revisor pode estar lendo e ai as coisas podem se complicar.
Links e dicas:
Submissões pra Aoir 2025 que vai acontecer em Outubro na UFF em Niterói estão abertas até dia 01 de Março. Enviem seus trabalhos no link - https://www.conftool.org/aoir2025/
No sábado 25/1 rolou o último show da carreira dos pioneiros da Electronic Body Music, Front 242. Direto de Bruxelas, os criadores do EBM e expoentes da chamada belgabeat nos anos 80 fizeram uma performance simplesmente absurda e ainda nos presentearam com streaming ao vivo. Que show foda! Imperdível! Tá la no youtube na íntegra, o final é emocionante demais.
Tem artigo novo do Cultpop e do Urbesom publicado na Revista FAMECOS. “Não é Só Uma Festa, Tá Ligado?” Trabalho e circuitos afetivos em coletivos musicais TLGBQIA+ no Sul do Brasil co-autoria entre Simone Luci Pereira, eu, Lucas Goulart e Jonara Cordova. Nesse artigo, partimos dos debates sobre as teorias dos afetos para analisar festas de coletivos musicais LGBTQIA+ em Porto Alegre. Fiquei feliz demais em poder regatar uma parte histórica sobre o início da cena de música eletrônica na minha cidade, algo que ainda foi pouco escrito, sobretudo na comunicação.
Circe de Madeline Miller (tradução de Isadora Próspero, editora Planeta, 2019) é um baita livro! Demorei pra ler, pois comecei antes da minha mudança pra SP - em 2022 - e no meio do caos perdi o livro em algum lugar e não o achava, até que o reencontrei no final de 2024 e cataploft a magia literalmente aconteceu. A perspectiva da Circe, uma personagem meio lado B da mitologia grega (ao menos pra mim que não sou especialista) me cativou demais. Agora já to aguardando a tal minissérie que a HBO Max anunciou, mas ja sabendo que nada vai bater o impacto desse livro na minha cabeça.
David Lynch se foi e minha singela homenagem para ele foram as frases que joguei aqui no texto, às quais eu não poderia concordar mais. O mundo perdeu um dos grandes.
Se cuidem e até a próxima!
Gostei demais de saber como funciona o seu modo de escrita de projeto, foi inspirador!
Ainda estou tentando entender como funciona na minha área de engenharia (meus projetos de pesquisa até o presente momento foram tudo meio que aos 45 do segundo tempo, sabe?) mas acredito que o lance de ter uma conexão pessoal com o seu objeto de pesquisa é de fato MUITO importante até para nós. Ou talvez eu esteja só falando por mim mesma rs
De qualquer forma o seu texto serviu como motivação para eu voltar a pensar no meu projeto de doutorado <3