Boston College, onde passei ótimos meses entre 2004 e 2005 durante o doc sanduíche, mas antes dos dias de glória, os dias de luta!
Olá pessoal, tudo bem?
Essa cartinha está muito muito atrasada, mas né como vocês já devem ter imaginado, fui completamente atropelada e tragada pela vida. Desde o final de fevereiro estou envolta em um mar de prazos de entregas de resumos, artigos, congressos, projetos, e tudo mais que mantém a burocracia universitária uma das redes sócio-técnicas mais idiossincráticas possíveis.
We were tight, but it falls apart as silver turns to blue
Waxing with a candlelight, and burning just for you
Allocate your sentiment, and stick it in a box
I've never been an extrovert, but I'm still breathing
A versão acústica só saiu oficialmente em 2015, 11 anos depois do meu ataque de pânico no qual eu fui cantando ela já mais devagar
Pra completar ainda estive doente. Primeiro, o ataque de uma LER (Lesão por Esforço Repetitivo)/ Tendinite que me incapacitou para digitar. Já estou sob tratamento (fisioterapia + acupuntura e medicação) . Ai nessa semana com o calor insuportável que estava ainda adquiri uma infecção nas vias respiratórias - fiz testes de Covid, Influenza e Dengue, mas foram negativados, felizmente!
Estou de volta, tentando correr atrás do imenso número de mensagens e tarefas que ficaram pra trás nesse meio tempo. Tenho no rascunho a parte 2 do texto anterior sobre as lacunas na formação dos pesquisadores, porém, decidi que ele vai ficar para depois, pois uma experiência me “afetou” mais durante o final de semana passado e é sobre ela e as memórias que elas me evocaram que trouxe uma breve reflexão.
Na semana que passou assisti dois shows que estava esperando há meses - em tempo, comprei ingressos ano passado pra assistir artistas até junho de 2024 rs esse é o nível da doideira e ainda bem que fiz isso porque se não tivesse comprado em 2023, não conseguiria nesses meses de falência e gastos com remédios e outras coisas.
Nostalgia is negation. Sadness is rebellion
Mas enfim, o primeiro show foi no sábado 16/03, do Lebanon Hanover, banda que convencionamos para o fim desse texto de chamar de “darkwave”. Eu já tinha assistido o Qual, projeto paralelo do William Maybelline que é totalmente eletrônico EBM, mas ainda não tinha visto o LH com a musa gélida Larissa Iceglass. Foi ótimo estar entre amigos e encontrar um público renovado (muitos jovens) pra assistir um duo que tem mais de 10 anos. Jamais imaginei que iria assisti-los no Brasil e com tanto público - considerando o quão nichada é essa cena.
Fiquei pensando muito sobre a ideia central de um dos hits da banda, Sadness is rebellion: “Nostalgia é negação. Tristeza é rebelião”. Contra a alegria forçada de um maistream cheio de artistas “bonzinhos” e os usos mercadológicos da nostalgia na cultura pop, acho que a ideia de se pensar na possibilidade da tristeza como rebelião ganha muitos pontos comigo. A rebelião e a resistência podem ser pontos de força uma vez expostos e tomados como possibilidades estéticas e artísticas.
O que me leva finalmente ao tema dessa cartinha. Farei uma digressão não nostálgica. Entrei no doutorado no ano de 2002 e desde o início eu pretendia fazer o Estágio de Doutorado (mais conhecido como Doutorado-Sanduíche, SWE nas terminologias das agências de fomento).
Para tanto, comecei a me programar desde o começo do doc. Eu tinha a proficiência em inglês desde o início e, em 2003 conforme eu avançava nos estudos comecei a ficar de olho em possíveis supervisores e universidades. A universidade em que eu estudava tinha um longo convênio com a França, mas meu objeto não tinha conexões por lá e também achei - e fui bem contra a maré nesse sentido, que eu ampliaria meu repertório acadêmico se fosse para outro lugar que não o mesmo onde a maioria dos professores com quem eu já estudava haviam realizado suas formações.
Das aleatoriedades
Nesse meio tempo duas coisas aparentemente aleatórias aconteceram. A primeira é que um pesquisador italiano recém radicado nos EUA - que de certa forma trabalhava numa perspectiva teórica análoga a minha - veio nos dar um curso e meu orientador sugeriu que ele estivesse em minha banca de qualificação. Pelas normas dos editais de bolsa eu precisava estar com a qualificação defendida para poder concorrer. Precisei correr com os prazos e me tranquei em casa por duas semanas escrevendo a qualificação de forma antecipada e em inglês e português.
Deu tudo certo, fiz a banca e ele foi bastante solícito. No entanto, havia um entrave, como ele recém havia sido contratado numa universidade norte-americana, ele não poderia me receber oficialmente, questões meramente burocráticas. Acho que outro tipo de pessoa teria desistido, mas a pessoa nerd e obcecada (eu) voltou a caçar nomes quando caiu um artigo em minha mão de outro pesquisador, esse da sociologia, mas com uma linha ainda mais relacionada ao meu trabalho.
Eu já conhecia os artigos dele da famosa e hoje extinta lista de discussão/grupo de pesquisa CTheory (jovens, uma hora eu conto esses primórdios do então chamado campo da cibercultura). Fui atrás para ver se já havia alguma publicação dele em português e bingo! Havia sido traduzida na revista do meu PPG e por um dos meus professores.
Falei com o professor, que tinha uma fama de extrememante duro/ difícil e ele disse, “sem problemas, troquei alguns emails com ele por conta da tradução e posso te apresentar, o resto fica por tua conta em falar sobre o teu projeto”. E assim fui apresentada por email, ai discuti e enviei uma copia do projeto de qualificação - que já estava em inglês - e consegui o aceite para o ano seguinte, 2004.
Já no início de 2004 comecei toda a saga que é a preparação de um doc sanduíche numa época que a internet ainda engatinhava. Trocentos e-mails, documentos, enfim, naquele momento o programa não tinha bolsas próprias , aliás as bolsas eram muito escassas. Assim me inscrevi na chamada modalidade de balcão do CNPq.
Enviei tudo em fevereiro ou março (não lembro mais da linha do tempo), mas lembro que na um dia antes da Páscoa recebi a seguinte resposta. Meu projeto tinha mérito, inclusive foi muito elogiado, mas não havia verba e portanto não era prioritário. Lembro do soco no estômago lendo e relendo que eu não tinha ganho. Porém, ainda caberia recurso. Meu orientador me disse , escreva, há sempre 50% de chance de um sim.
Passei a Páscoa inteira chorando e me entupindo de chocolate, morrendo de tristeza. Enquanto isso, colegas que haviam pedido bolsa para o país do Asterix, tinham todos conseguido. Cheguei a me questionar se eu estava correta em ter seguido o que acreditava. Essa tristeza toda eu transformei em um recurso (muito bem escrito e justificado, modéstia à parte) que redigi com toda a força da rebelião que se internalizava ali.
Mais ou menos no fim de maio acho eu, recebi a notícia. A agência acatou meu recurso e eu havia conseguido a bolsa. E ai começou uma outra saga, da documentação toda para viagem e do famigerado visto dos EUA. Eu já havia viajado, mas em um mochilão pra Europa. Nunca tinha ido pros Estados Unidos e naquele momento pós 2001, não havia mais consulado dos EUA na minha cidade, Porto Alegre, e eu teria que fazer o visto em São Paulo.
Enfim, passei quase uma semana sem dormir direito, organizando e repassando toda a lista de documentos - que era imensa e chata - para o meu tipo de visto de estudante/pesquisadora. Com uma graninha de um freela comprei passagens pra SP e consegui ficar na casa de uma ex-colega pra economizar hotel, tudo certo. Bolsista sempre com muitas dificuldades.
Chegou no dia da entrevista no consulado, chego la, tensa, verificação dos documentos, tudo certo até que pedem o formulário XX. E eu: “que formulário é esse?” “Moça, eles te enviam direto da universidade confirmando que você vai pra la. E eu” mas não é essa carta”. Não. É um formulário. Ai vi que quando revisei minha lista de documentos tinha visto que o tal formulario composto de duas letrinhas tinha se juntado numa mesma linha de outro doc e aquilo me confundiu.
A atendente do consulado foi ate bastante simpática e me disse. “Olha só, está tudo aqui, volte outro dia direto com o formulário nem precisa agendar” E eu pensei: “Me ferrei pois não tenho outro dia, volto amanhã cedo pra POA”. Saí desolada do consulado me culpando por não ter conferido direito. Saí arrasada de tristeza achando que a bolsa estava perdida.
Mas para variar eu não desitiria tão fácil e pensei “e se eu for numa lan house” e enviar um e-mail pra universidade? Se eles me enviarem o formulário hoje consigo voltar aqui ainda. Era 2004 e os celulares não eram smart. Caminhei várias quadras num bairro totalmente desconhecido e consegui acessar um computador. Enviei o e-mail em uns 15 minutos recebo a resposta. “Podemos enviar sim, claro, mas esse documento é oficial e só pode ser emitido de forma impressa. Vai levar entre 15 e 30 dias para chegar ai pela entrega mais rápida”.
Heartbreak Station
Isso já era fim de junho e minha viagem estava marcada para agosto. Saí chorando da lan house, me sentindo no maior fundo do poço ever. Fui lentamente caminhando até a estação de trem - era trem mesmo da CPTM e não o metrô - para poder voltar para casa onde eu estava hospedada.
Quando chego na plataforma (completamente vazia as 11h da manhã por mais estranho que isso pareça), ondas de terror começam a me invadir, senti tontura, e não consegui entrar no primeiro trem. Tive uma sensação horrível, imaginando que eu cairia dentro do vão entre a plataforma e o trem e que talvez aquilo me salvaria de ter fracassado nessa tarefa.
Não conseguia mais respirar direito, sentia que estava febril, sentia dor de garganta e o coração apertado. Só um bom tempo depois entendi que tive um ataque de pânico muito violento com o qual eu nem sabia lidar nos meus vinte e poucos anos. Eu sequer conseguia chamar alguém para me ajudar.
With hindsight, I was more than blind, lost without a clue
Thought I was getting carat gold, and what I got was you
Stuck inside the circumstances, lonely at the top
I've always been an introvert
Happily bleeding
Sentei então no banco da plataforma e uma música (de 1996) começou a invadir a minha mente. A voz de Brian Molko que eu escutava mentalmente sem nenhum walkman ou mp3 começou a fazer todo o sentido em meio aquela perturbação mental toda.
Comecei a cantarolar os versos que seguem :
Someone tried to do me ache
Someone tried to do me ache
Someone tried to do me ache (it's what I'm afraid of)
Someone tried to do me ache (it's what I'm afraid of)4, 7, 2, 3, 9, 8, 5, I gotta breathe to stay alive
And 1, 4, 2, 9, 7, 8, feels like I'm gonna suffocate
14, 16, 22, this skin that turns to blister blue
Shoulders toes and knees, I'm 36 degrees
Shoulders toes and knees, I'm 36 degrees
Shoulder toes and knees, I'm 36 degrees
Shoulders toes and knees, 36 degrees
Acho que entrei em um loop mental de uns 60 minutos cantando sozinha, vendo trem após trem, passar até que um funcionário veio perguntar se eu estava bem. Miraculosamente eu estava bem: “I've never been an extrovert, but I'm still breathing”. Sim, eu ainda respirava.
Peguei o trem, voltei pro apto da amiga , liguei pra familia arrasada contando o que tinha acontecido e quando achei que ouviria a maior bronca da vida, recebi um acolhimento de que sim, erros aconteciam, mas eu ia conseguir, era só um documento. Só uma passagem de avião - obrigada ao meu irmão Nato (te amo sempre!) que me salvou pagando a passagem - paguei ele depois - , já que eu já tinha gasto com o visto (que não era coberto pela agência) e toda a função de documentos. Tudo extremamente caro para quem sobrevivia apensa de bolsa + freelas já que naquele momento as bolsas não permitiam trabalho oficial.
Passados 15 dias, recebi o documento e saí pulando de animação porque daria tempo. Remarquei a passagem e já no meio de julho fui novamente até o consulado. Cheguei la e a sensação do pânico começou a voltar quando cheguei no portão. Mas dessa vez me antecipei e comecei a cantarolar 36 degrees do Placebo apenas mentalmente (não dava pra ficar com mp3 player lá dentro). Em poucos minutos me chamaram, entreguei o formulário que faltava e fui aceita sem responder praticamente nada. O atendente do guichê apenas disse “está tudo correto! Boa viagem!”
Saí de lá e me dei ao pequeno luxo de pegar um táxi - não tinha condições de enfrentar a estação de trem - e fui almoçar num restaurante que eu gostava. Voltei no mesmo dia para Porto Alegre com a missão cumprida num vôo a noite.
Toda essa história apenas para dizer que foi muito bom rever o Placebo há exatamente uma semana e embora eles não tenham tocado 36 degrees, eu não me importei porque foi meu terceiro show dessa banda, que como eu é tão tight e weird, e foi o melhor show que vi deles porque estavam afiados, mais velhos, tecnicamente muito bons (envelhecer é uma dádiva) e até “simpáticos” pros padrões da Brianna ne? Foi um show emocionante que dispensou a nostalgia em prol de músicas mais novas e tentou desconectar as pessoas do celular pra prestar atenção na performance do ao vivo, que nunca se repete e é única.
Tá, não foi só por isso que escrevi. Foi também pra dizer que a vida universitária é complexa, dura e difícil e nos faz passar por sensações muito absurdas, e que sim, uma música, um livro, um filme, qualquer expressão artística pode salvar nossas vidas (ao menos por alguns momentos) nesse caminho por vezes solitário e que nos faz duvidar de tudo o tempo todo.
36 degrees evitou que eu cometesse uma loucura ainda maior na plataforma do trem e por isso eu sou grata. E a música em geral e oas artistas que eu gosto e que me ajudaram na solidão gélida de ter morado sozinha em Boston por quase um ano estudando exatamente o que eu queria pesquisar.
Não tenho exatamente uma lição nessa história, apenas acho que eu precisava compartilhar essa experiência.
Deixando aqui uma imagem nada subliminar da @partiuintercambio pra todo mundo que quiser dicas práticas sobre doc sanduíche
PS 1: E no fim das contas eu tinha razão, pois ter ido pros EUA - e não pra França - me permitiu ter uma abordagem de pesquisa diferente da maioria no meu programa - acabei me destacando indiretamente mesmo sendo essa introvertida - e ainda consegui ver muitos shows, publiquei artigos, resenhas, publiquei entrevistas com autoras e autores que hoje são super cult na área rs (amo ser indie de bibliografia lol).
PS 2: Em 2004 eu traduzi para o PT-BR um capítulo para um livro organizado pelo pesquisador que esteve na minha banca de qualificação, por causa disso em 2005 acabei sendo indicada para uma vaga num ppg (claro, passei no processo seletivo, a indicação foi um pontapé, mas né círculos e aleatoriedades), um mês depois da minha defesa. A vida é muito doida!
Fiquei muito tocada pelo texto! Mesmo! Fiquei pensativa sobre a tristeza ser rebelião (e em um mundo patologizante é mesmo) e principalmente pela agonia da experiência (mesmo sabendo de antemão que haveria um final feliz). A música nos salva. A arte nos salva todos os dias.
Obrigada Ana, eu pensei muito se deveria escrever sobre isso, mas acho que foi uma daquelas situações limites e que nos meus 28 anos (quando a enfrentei) eu nao tinha a menor ideia do que estava acontecendo e do quanto essas experiências vão nos moldando da melhor e pior forma possível. Achei que seria importante compartilhar isso pq muitas vezes as pessoas não sabem de onde a gente veio e tem a sensação de que a vida foi ganha. Passei o fim de semana todo pensando na ideia tristeza como rebelião e acho que localizei nesse episódio a forma como eu a encaro nessa maluquice que é a vida acadêmica