Episódio 16 - A vida e o Lattes, o Lattes e a vida, tudo junto misturado.
"Tudo ao mesmo tempo agora. Uma coisa de cada vez"
Oi pessoal, tudo bem? Como estão por ai? Está muito difícil respirar esse ar insalubre de São Paulo, o antropoceno bem ai na nossa cara, e ainda tem negacionista das questões climáticas dizendo que não é isso. Incrivelmente, tenho saído ilesa de muitas crises de sinusite e rinite. Mas vamos ao que interessa. Essa cartinha será um tanto rápida e é fruto de alguns pensamentos e conversas e até mesmo de discussões em sala de aula.
Na última semana, após o bloqueio do Twitter no Brasil (me recuso a usar o ridículo nome X) fiz uma aula no PPG como se fosse uma coleção de threads encadeadas uma na outra partindo dos artigos e capítulos que precisávamos debater e mesclando algumas questões que permeavam o debate, como a construção do campo da comunicação digital no Brasil - quem diria eu falando disso, mas né - , como funcionavam alguns órgãos relacionados à pesquisa e tudo mais. O fato é que ao sair da aula me deparei com alguns posts de perfis que falam de pesquisa rediscutindo a ideia/meme/imagem sobre “Viver não cabe no Lattes” - olha o algoritmo em pleno funcionamento.
Além disso, durante a semana também devorei a incrível nova edição do livro Carta de uma orientadora da antropóloga e professora Débora Diniz que trata muito dessa questão da relação orientadora- orientandas. E, assim como ela, vou manter o plural no feminino, afinal a maioria das minhas orientandas é A.
Essas duas questões meio que foram se interligando e pensei que queria falar sobre elas na cartinha de hoje.
O primeiro ponto é que no meu modo de pensar e fazer essa frase do “viver não cabe no Lattes” simplesmente NÃO EXISTE. Primeiro porque vida e carreira estão interconectadas de uma forma tão orgânica e caótica que qualquer tipo de separação fake não funciona (vou explicar em breve o porquê).
Em segundo, que, é uma ideia que acaba sofrendo um péssimo efeito de rebote para uma possível desistência. Ou seja, se a vida acadêmica é tão ruim que o CV Lattes não dá conta, por que eu vou fazer isso comigo mesma? Isso tudo, torna uma possibilidade de carreira ainda mais inatingível do que já tradicionalmente é. Então na ideia de fazer piadinha, acaba gerando uma sensação ruim. Sinto a mesma coisa quando vejo memes de “humanas miçangas, vender arte na praia blá blá blá whiskas sachê”.
No more trabalho acadêmico como se fosse amor romântico
Eu acredito que o primeiro passo para que a gente possa sair dessa idealização para o bem e para o mal da carreira acadêmica é compreender que é um trabalho como qualquer outro com peculiaridades. Um trabalho intelectual. Mas muito parecido com todos os outros. Não é uma vocação/chamado ao estilo religioso. Já falei isso várias vezes, mas repito. A segunda é tentar limar o fetiche por certos tipos de intelectuais que estão no nosso próprio imaginário de como pesquisadores e pesquisadoras devem ser, parecer, vestir, falar, etc.
Um bom primeiro exercício é, ao ler um artigo, capítulo ou livro escrito por alguém da academia que você desconhece (não vale olhar no google) - quando você lê apenas o sobrenome - , você se refere à pessoa que escreveu como homem? Como mulher? Pensa nele/nela como alguém de determinada raça ou classe social? Pensa na roupa que a pessoa pode estar usando ou no tipo de corte de cabelo? Na maior parte do tempo - e vejo isso o tempo inteiro em aula - as pessoas imaginam um homem branco com roupa “séria de intelectual”.
Então tratar essa separação da vida e do Lattes serve para atender esse tipo de imaginário. Sinceramente, tô fora disso. É óbvio que se esse estereótipo existe, ele tem uma razão e é uma razão histórica de um determinado tipo de presença. E para mim, esse tipo de piadinha travestida de meme, justamente me soa a um certo saudosismo de uma Academia com zero diversidade.
É claro que ainda falta muito - como também em outros espaços de trabalho & poder - para atingirmos mais igualdade, ética e diversidade. Entendo também que a intenção é boa, para avisar as pessoas que elas precisam ter vida fora da Academia. É um fato real oficial, uma vez que é um tipo de trabalho que tem uma tendência a nunca terminar e te gerar um burnout.
Princesa, meu grudinho, companheira fiel e protagonista da cartinha hj
Mas a verdade é que na maior parte do tempo, não será possível ter essa separação vida & lattes, porque são fluxos e contrafluxos. Num dia você está super bem, colocando em ordem pareceres e demandas das aulas, organização de eventos, etc, mas ai tu vai levar a gata no veterinário pra uma consulta de rotina para a profilaxia nos dentinhos, chega um cara que cria uma pomba chamada Joana (junto com 3 gatos) e ela precisa fazer um raio-X porque está mal porque está com um ovo que não é posto para fora.
Por conta disso, as consultas todas da clínica atrasam em mais de uma hora e tu precisa sair correndo, perdendo o desdobramento dessa história divertidíssima. Mal tem tempo de almoçar e não consegue ler o capítulo que sua orientanda enviou , chega correndo pra dar aula e percebe que está com um tênis furado e o moletom velho de capuz que usou pra ir no Pilates. E o pior? Sem batom e sem carregador do celular.
Pensando na pomba Joana quando deveria pensar em epistemologia
Você está lá destrinchando altos conceitos teóricos com os alunos, mas no intervalo lembra mesmo é como estará a pomba Joana e se tem alguma comida na geladeira para quando chegar em casa. Ao retornar, tu tá exausta. Sinceramente vocês acham que alguém tem condições de ainda escrever alguns parágrafos do artigo cuja entrega é pra próxima semana? Claro que não!
O máximo que consegui fazer esse dia foi comer algo e me esparramar na cama e tentar ler uma página do bestseller que tô lendo, se bobear eu nem saberia escrever meu nome. E olha que nem tenho filhos humanos e divido todo o trabalho doméstico - incluindo o gerenciamento da casa, contas etc - com o marido. Mas infelizmente, devido ao trabalho presencial (antes era online) e AVC, tivemos que repensar algumas rotinas e algumas tarefas vão sendo feitas no método, quando é possível, quando dá, senão fica pra depois.
E sim, esse pequeno recorte da minha realidade que eu trouxe aqui é só pra ilustrar porque as realidades são essas ou piores. As únicas pessoas que eu conheci e que não passavam perrengues e se dedicavam com profundidade de tempo ao mundo acadêmico, são homens ou solteiros ou mais velhos (com as “esposas gerenciando todo o resto da vida”,) gente herdeira de família com muita grana e por ai vai.
A realidade de boa parte das minhas colegas é essa para pior. Estende uma roupa, lê um artigo, escreve um parágrafo, prepara um café, faz algum comentário para alguma matéria, manda msg pra marcar um exame, paga uma conta, prepara um chimarrão e envia um parecer do artigo que leu.
Foto de 2019 do lab de pesquisa CULTPOP ao encerrar a organização de um simpósio presencial de 2 dias. Sem eles e elas, meu trabalho não andaria. Crédito da foto: Iris Borges
Isso quer dizer que é pra gente fazer tudo meia boca? Não, claro que não. Mas como diz a música, “tudo ao mesmo tempo agora” que é pra gente entender que a vida é imponderável e nos leva a linhas de tempo que a gente vai adaptando ao Lattes. Tem outros dias que a organização segue seu fluxo. A gente consegue acordar ir na Academia, voltar e resolver aquela questão de pesquisa que fez o texto deslanchar ou você consegue atender uma aluna e fechar um relatório de qualificação junto com ela. “Uma coisa de cada vez”. É isso, vamos fazendo bem feito o que é possível com focos de prioridades, que inevitavelmente acabam mudando.
Fazendo pesquisa de campo sobre fãs na Dr. Who Experience em Cardiff (País de Gales) em 2015. Exterminate!
Um outro ponto ainda sobre esse lance de lattes & vida é no meu caso eu transformo muito do que faço em itens do Lattes pois são pontos importantes do que eu pesquiso. Eu vivo o que eu pesquiso boa parte do tempo, tanto em termos do pensar sobre, quanto dos objetos. Pesquiso apenas coisas que me interessam muito, que me tocam de alguma maneira e que no próprio caminho da construção do conhecimento me geram emoções. Pensar nos processos mais do que nos fins é o que tem me motivado. Mas claro, nem todo mundo lida com o mesmo tipo de temática que eu e compreendo quem quer se distanciar ao máximo. Cada um encontra o seu modo.
Mesmo assim também tenho momentos em desconecto total e faço coisas que não estão nada relacionadas, ou simplesmente não faço nada, e procuro conviver com pessoas que não fazem parte desse nicho, falo um monte de besteiras e me divirto.
Acho que o mais importante é ir aprendendo a gerenciar as expectativas pra não virar um workaholic completo e manter sua autenticidade em um meio que é bastante impermeável. Dá para ir fazendo pelas bordas e encontrando gente que “fala a mesma língua que vc” sem precisar abrir mão dos seus valores, do que você gosta e de quem você é para ser aceita no grupinho das garotas que nas quartas-feiras usam rosa (ou lêem algum teórico com o qual vc não concorda).
Até a próxima!
Dicas Finais
Beetlejuice 2 e esse figurino impecável.
Matéria sobre sensibilidade gótica em Beetlejuice 2 , com comentários do professor Paul Hodkinson - que foi supervisor do meu pósdoc na University of Surrey;
Pra quem se interessar pela minha opinião de fã do filme, dei meus pitacos lá na Vigília Nerd.
Por falar em figurino, pra quem estiver em SP e se interessa por moda, entre 17 e 20 de setembro vai rolar o 19o. Colóquio de Moda no SENAC-Santo Amaro. Muitas palestras, workshops e minicursos legais. Conjuntamente com a historiadora Laura Ferrazza, estarei coordenando o GT Moda & Cultura Pop. Ainda dá tempo para se inscrever como ouvinte.
E por fim, ontem (08/09) comemoramos o Star Trek Day, e deixo com vcs essa lapada phynna e elegante do ator Roberto Picardo - de Star Trek Voyager - no Kiko dos Foguetes. O cara é um vilão clássico e nem pra conseguir entender o universo da série, pqp! Vida longa e próspera a todos que como eu são trekkers felizes.
Ficou muito bom o texto. O equilíbrio é o caminho. Pena que é um caminho difícil de atingir Rsrsrs