Episódio 14 - Aventuras de pesquisa de uma sulista no Norte Global e o caos do fim do semestre
De volta para falar um pouco de internacionalização
Após 3 meses sem enviar uma cartinha, estou de volta! Em primeiro lugar, agradecendo aos leitores que têm seguido firmes apesar da minha ausência. Não que seja uma justificativa, mas nesse meio tempo entreguei mais um projeto de pesquisa, 3 consultorias e um artigo. Além disso, família, amigos, shows, vida social, questões de saúde e tudo mais. A vida não fica parada enquanto fazemos pesquisa.
Escrevo do meio das férias, após uma série de acontecimentos - a maioria muito bons - e o caos amplificado que sempre bate na porta de todos os professores ao final do semestre letivo. Essa divisão dos semestres é obviamente uma marcação aleatória e cultural, mas que não deixa de ter sua ritualística. Especialmente na transição da primeira metade para a segunda do ano, nos dá aquele fôlego e respiro para entrar na próxima etapa e dar aquela corridinha final com os devidos ajustes. Nessas férias estou aprendendo a descansar de verdade como há muito não fazia. Dormindo até tarde, dando atenção aos gatos, namorando, encontrando amigos, lendo literatura e mantendo minha obsessão com os dragões Targeryan.
Por hoje eu gostaria de comentar alguns highlights da missão de pesquisa (viagem ou visita de pesquisa talvez fique melhor, pois sempre relaciono missão com algo religioso, tipo o filme A Missão de 1986 com De Niro e já me causa um certo problema tanto pelos jesuítas - super gatilho - quanto por meus ancestrais indígenas rs) que fiz agora em junho para a Alemanha.
Meu laboratório de pesquisa possui uma parceria de pesquisa desde 2016 com o laboratório de pesquisa DIGICAT - Comunicação e Transformação Digital - da Universidade de Potsdam no estado de Bradenburgo, há mais um menos 25 minutos de Berlim. Quando começamos a parceria o lab tinha outro nome (PROCO) e estava sediado na Universidade de Duisburg-Essen no centro-oeste do país, outro estado e região.
Desde então já tivemos 3 projetos financiados por agências de pesquisa (União Europeia, CAPES-DAAD e DFG ), publicações em periódicos e intercâmbios entre professores e alunos com doutorados sanduíches de ambos os lados e viagens de curta duração. A cada projeto que fazemos, novos aprendizados, dificuldades - especialmente em relação a burocracias universitárias de ambos os países, que são muitas e na maior parte do tempo não se conversam. Então cabe a nós fazermos essa espécie de tradução.
Vista da janela da minha sala como visitante
Uma coisa que é bastante distinta é o grau de autonomia e dedicação dos doutorandos e seu envolvimento nos projetos coletivos. São vários os motivos dessa autonomia que vão desde a diferenças nas estruturas do sistema acadêmico e uma que tem muito a ver com que falei tanto no texto sobre o trabalho acadêmico quanto no da divulgação científica: os doutorandos não são bolsistas, são trabalhadores contratados pela universidade, no caso pelo laboratório de pesquisa, com salário, direitos (férias, licenças etc) e deveres que são garantidos durante o tempo em que realizam o doutorado.
Enfim, longe de mim dizer que país X ou Y é o melhor ou que não existam problemas, que na maior parte do tempo são os mesmos no mundo todo, mas essa diferença da remuneração e de um certo nível de segurança durante um período tão complexo realmente faz diferença. As universidades que produzem pesquisa na Alemanha são todas estatais (federais com aportes estaduais e tb algum dinheiro da iniciativa privada a titulo de doação).
O país passou por um processo de estatização das instituições eclesiásticas e privadas. Assim, quando um doutorando é aceito em um programa de pós-graduação ele está prestando serviço ao Ministério da Educação, que é quem o paga através da universidade (com uma ou outra diferença) . Não entrarei em detalhes mas é apenas para a gente compreender um pouco a diferença no sistema.
Existem várias formas de internacionalização e acredito que a pesquisa brasileira nas humanidades tem experimentado muitas delas. Algumas extremamente de cima pra baixo : '“trazer um figurão gringo [normalmente um homem] ai que vai dar palestra impondo conceitos e análises num evento cheio de pompa, levar o cara pra tomar caipirinha e ir em roda de samba e fica por isso mesmo”, sem grandes contatos ou resultados. Em geral esse tipo de internacionalização gera até resultado e contatos, mas apenas pro professor que trouxe o figurão e no maximo pra um pequeno grupo.
Temos tb uma internacionalização de forma mais horizontal, e a que deve ser buscada, onde existem trocas efetivas que resultam em construção de conhecimento para ambos os países/regiões/instituições através de projetos efetivos que gerem publicações, transferências de tecnologias, conceitos e compreensões culturais, etc.
Obviamente que existem assimetrias e destaco que na minha experiência a maioria delas é de cunho financeiro/infra-estrutural e não da qualidade da pesquisa em si. Enquanto pesquisadores das Humanidades Digitais/ Comunicação Digital - apenas para ficar no meu campinho - somos criativos e resolutivos, bons de insights e argumentações. O que nos falta na maior parte do tempo é uma melhor estrutura de trabalho, o que inclui entender a pesquisa como mais um trabalho e não uma missão/vocação.
Digitalvilla
Mas voltando a minha viagem em si, foi a primeira vez que fui visitar a Universidade Potsdam, pois em minha última missão em 2022, meu colega de projeto ainda estava em Duisburg e eu ainda na Unisinos. Esse foi nosso primeiro intercâmbio sob novos ares e instituições. Passei 12 dias como pesquisadora-visitante na Digitalvilla . A Digitalvilla é um centro que concentra a maior parte das pesquisas sobre Sociedade Digital na universidade no campus Griebnitzsee e também está relacionado ao Instituto Weinzenbaum (formado por um pool de universidades). Nesse período, tivemos reuniões de fechamento de um dos nossos projetos, que termina em Setembro desse ano, e de organização de nossas próximas atividades conjuntas e editais, além de ter ministrado palestras e workshops.
Um dos workshops que ministrei conjuntamente com o colega Stefan Stieglitz foi sobre os resultados de nossos projetos anteriores em pesquisa em mídias sociais no Brasil e na Alemanha. A partir da apresentação de um conjunto de resultados de projetos diferentes, partimos para uma segunda etapa: formulamos e propusemos um novo tema, uma questão de pesquisa e uma abordagem teórica para um outro projeto cujo edital específico está em aberto e que além do Brasil e da Alemanha incluirá um outro país, dessa vez do continente africano.
Queria comentar que o projeto envolve Comunicação e Mídias, Sociologia e Sistemas de Informação, ou seja, temos a velha dificuldade interdisciplinar, além das questões culturais. Mas é muito legal poder ver os doutorandos desenhando um projeto enquanto a gente (os professores) argumentavamos sobre as possibilidades e desdobramentos que fariam mais sentido. Eu sinto falta desse tipo de abordagem mais propositiva/ mão na massa mesmo que dentro de uma discussão teórica e metodológica nos PPGs em geral por aqui.
Uma das coisas que pude ver em primeira mão, foi o uso da API do Tik Tok que um dos doutorandos apresentou. As limitações de uso dessa API são muitas, começando por restrições geográficas - por enquanto o Brasil não está incluido - e financeiras, pois o preço é salgado. Mas também há dados interessantes que podem ser acessados em termos de seguidores e tendências. Por enquanto fizemos apenas um uso exploratório como teste, mas pretendemos nos aprofundar nisso à medida que o projeto avance, combinando também com outras metodologias mais qualitativas.
Também conversamos muito sobre popularização da ciência e o quanto os grupos aqui do Brasil conseguem ter um alcance de maior qualidade em sua comunicação científica nas mídias sociais, sobretudo em uma linguagem menos sisuda do que na Alemanha. Os contextos culturais e os usos de memes foram muito destacados por todos os doutorandos.
Pausa no passeio de bike pra uma foto com uma das vistas
Por fim queria comentar que sempre sou muito bem recebida nas terras do Norte e que dessa vez encarei uma quase corrida de bicicleta - me enganaram dizendo que era um passeio pela belíssima cidade de Potsdam - mas as criaturas pareciam que tavam se preparando pra Tour de France. De qualquer forma, foi um caminho cinematográfico (lembrando que o distrito de Babelsberg era considerada a Hollywood alemã pois foram onde alguns dos principais filmes do expressionismo alemão foram gravados e até mesmo a série Dark teve gravações na região. O curso de cinema da UP é super conceituado por lá) com parques, lagos e até palácios. Uma atividade bem inusitada para levar uma pesquisadora visitante pouco afeita a esportes ao ar livre e que não andava de bike há mais de dez anos. Mas no fim das contas a vista valeu todo o cansaço. Uma aventura e tanto.
Eu boto muita fé nisso aqui: "essa diferença da remuneração e de um certo nível de segurança durante um período tão complexo [doutorado] realmente faz diferença" e na visão de vocação/missão que você comentou. Sempre bom ouvir relatos de outras formas de ser/fazer as coisas. Obrigado por compartilhar <3